Venda direta de etanol aos postos revendedores pelos produtores

O Congresso Nacional pode usar decreto legislativo para sustar norma regulatória da ANP, por discordar do seu conteúdo material? 

O Plenário do Senado Federal aprovou na terça-feira (19.06.2018), por 47 votos a dois, o Projeto de Decreto Legislativo nº 61/2018, o qual, se aprovado pela Câmara dos Deputados, para onde seguiu, sustará os efeitos do artigo 6º da Resolução ANP nº 43, de 22 de dezembro de 2009, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, que determina que o etanol deve ser vendido pelos produtores às distribuidoras, que, por sua vez, comercializam com os postos revendedores de combustível. O objetivo é que produtores (usinas) possam comercializar diretamente o etanol para os postos revendedores. O tema tem causado certa polêmica no setor, sendo alvo de críticas por parte da entidade que agrega empresas responsáveis por 60% da produção de etanol do país (União Nacional da Indústria de Cana-de-Açúcar – Unica), que está unida à Plural (associação das distribuidoras de combustíveis líquidos) e à Fecombustíveis (federação dos postos revendedores). Em nota técnica, a ANP afirmou que a liberação da venda direta exigiria mudanças na tributação que não estão previstas em lei. O presidente do Sindaçúcar – PE (Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool de Pernambuco), Renato Cunha, defende que a permissão da venda direta dá mais opções ao consumidor. De igual forma, outros produtores da região Nordeste são favoráveis à medida aprovada pelo Senado.

A despeito dos argumentos de natureza competitiva, técnica ou fiscal, a favor e/ou contrários à venda direta do etanol aos postos revendedores pelos produtores, neste texto abordaremos apenas a perspectiva de validade constitucional do Decreto Legislativo que pode vir a ser aprovado pelo Congresso Nacional.

Em regra, o Poder Executivo exerce competência regulamentar por meio de decreto presidencial ou outro regulamento, nos termos do art. 84, IV, da Norma Fundamental, com o fim de dar fiel cumprimento a alguma lei. Pode ainda exercer função legislativa — a qual se dá nos termos do art. 68 da CF/88 –, mediante solicitação de autorização articulada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, que especifica seu conteúdo e os termos de seu exercício. O decreto legislativo é instrumento adequado para controlar politicamente a atuação normativa do Poder Executivo, mas encontra balizas constitucionalmente definidas. Seu uso está sujeito ao crivo do Poder Judiciário, que deverá verificar se o Congresso Nacional observou os requisitos para edição do instrumento, ou seja, se o ato objeto de sustação desbordou do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, conforme o caso.

Com efeito, o art. 49, V, da Constituição Federal de 1988 dá competência exclusiva ao Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. A Constituição Federal instituiu assim um expediente de controle político de constitucionalidade (fiscalização normativa abstrata), o qual objetiva garantir a separação funcional, a independência e a harmonia entre os poderes (conforme prevê o art. 2º da CF/88). Se o ato normativo emanado do Poder Executivo (regulamento ou lei delegada) exorbita do seu poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, é porque contraria as regras de competência estabelecidas pela Constituição. Como é exercido pelo Poder Legislativo, trata-se de controle político.

Sobre o cabimento do uso do decreto legislativo como instrumento de controle de atos normativos lato sensu, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou conforme a seguir:  “O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…). Doutrina. Precedentes (RE 318.873AgR/SC, rel. min. Celso de Mello, v.g.). Plausibilidade jurídica da impugnação à validade constitucional da Instrução Normativa STN 1/2005. (AC 1.033AgR-QO, rel. min. Celso de Mello, j. 25-5-2006, P, DJ de 16-6-2006.) De igual forma, acerca do controle de constitucionalidade sobre os próprios decretos legislativos, a Corte Suprema sufragou o seguinte entendimento: “O decreto legislativo, editado com fundamento no art. 49, V, da CF, não se desveste dos atributos tipificadores da normatividade pelo fato de limitar-se, materialmente, à suspensão de eficácia de ato oriundo do Poder Executivo. Também realiza função normativa o ato estatal que exclui, extingue ou suspende a validade ou a eficácia de uma outra norma jurídica. A eficácia derrogatória ou inibitória das consequências jurídicas dos atos estatais constitui um dos momentos concretizadores do processo normativo.” (ADI 748MC, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-7-1992, P, DJ de 6-11-1992.)

No caso do Projeto de Decreto Legislativo nº 61/2018, no entanto, trata-se de sustação de ato normativo editado por uma agência reguladora federal, situação sui generis. Para que o Congresso Nacional possa sustar norma regulatória da ANP, não basta a discordância com relação à materialidade da prescrição normativa estatuída pela agência reguladora, é imprescindível que o Congresso Nacional demonstre que a atuação normativa da agência reguladora foi além dos limites da função regulatória que lhe foi atribuída por lei. Caso contrário, estaria o Congresso Nacional a exercer controle de mérito do ato administrativo levado a efeito com base na discricionariedade técnica das agências reguladoras, o que definitivamente não é a função do decreto legislativo.

A função regulatória do estado se exerce com base em uma legislação de regência de menor densidade normativa, que prescreve diretrizes (standards) normativos, princípios da política do setor a ser regulado, deixando a cargo da entidade competente a densificação normativa correspondente. Essa densificação normativa, que é a regulação econômica, é realizada por instrumental próprio (atos administrativos de caráter normativo, tais como resoluções, portarias, instruções normativas, etc.), através do qual se estabelecem marcos regulatórios setoriais. Esses marcos regulatórios setoriais são compostos por uma enormidade de instrumentos normativos que, para garantir sua efetividade, devem possuir coesão, ou seja, é preciso haver uma sinergia entre as diversas normas regulatórias setoriais.

Assim, uma prescrição regulatória que, por exemplo, estabeleça as condições para comercialização do etanol para postos revendedores, dispondo sobre quais agentes regulados podem fazê-lo, disciplina esta atividade com atenção às inúmeras sinergias existentes com as diversas outras normas regulatórias em que são estatuídos requisitos técnicos, econômicos e etc. necessários para o cumprimento desse marco regulatório. Dessarte, a simples modificação de uma prescrição pode afetar a efetividade de diversas outras normas regulatórias. Porque o arcabouço está preparado para funcionar de acordo com a citada coesão normativa, o que, aliás, é característica de qualquer sistema normativo.

Portanto, a função regulatória vai muito além da mera regulamentação para fiel cumprimento de alguma lei. “Cabe aqui, traçar conceptualmente o desenho das instituições jurídicas que passaram a desempenhar no Direito Administrativo contemporâneo essas funções homeostáticas em certos setores críticos da convivência social e econômica, de modo a proporcionarem o máximo de eficiência na solução de problemas, aliando, na dosagem necessária para cada hipótese, as vantagens da flexibilidade negocial privadacom o rigor da coercitividade estatal. A essa atividade dos subsistemas de harmonização é que se denomina de função reguladora, uma expressão que, não obstante o étimo, que a aproxima da voz vernácula regra, é, na verdade, um híbrido de atribuições de variada natureza: informativas, planejadoras, fiscalizadoras e negociadoras, mas, também, normativas, ordinatórias, gerenciais, arbitradoras e sancionadoras. Esse complexo de funções vai cometido a um único órgão regulador, para que este defina especificamente o interesse que deverá prevalecer e ser satisfeito nas relações sujeitas à regulação. Não se trata, portanto, da tradicional aplicação direta de uma definição legal vinculadora de certo interesse público específico, nem tampouco e muito menos, de chegar a uma definição legal discricionária, que é a que deve ser integrada pelo administrador por subsunção, à feição da administração tradicional, isso porque o interesse específico que deverá prevalecer nas relações submetidas à função regulatória não estará predeterminado, senão que deverá ser deduzido dos fatos, pelo exercício qualificado, negociado e ponderado dessa função.” (NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 107/108)

A Constituição Federal, em seu artigo 170, estabelece entre os fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa. Lei ordinária, contudo, pode estabelecer uma série de restrições ao efetivo exercício da livre iniciativa. O art. 238 da Norma Fundamental estatuiu que a lei ordenará a venda e revenda de combustíveis de petróleo, álcool carburante e outros combustíveis derivados de matérias-primas renováveis, respeitados os princípios da Constituição. Nesse panorama, foram editadas as Leis n° 9.478/97 (Lei do Petróleo) e n° 9.847/99 (dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas à indústria do petróleo e ao abastecimento nacional de combustíveis), bem assim criada a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP – (Decreto no 2.455/98), na função de órgão regulador das atividades que integram a indústria do petróleo, gás natural e dos biocombustíveis no Brasil.

A Lei do Petróleo, em seu artigo 8º, outorgou à ANP uma série de atribuições, das quais destacam-se as de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe: implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo, gás natural e biocombustíveis, contida na política energética nacional, nos termos do Capítulo I desta Lei, com ênfase na garantia do suprimento de derivados de petróleo, gás natural e seus derivados, e de biocombustíveis, em todo o território nacional, e na proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; regular e autorizar as atividades relacionadas à produção, à importação, à exportação, à armazenagem, à estocagem, ao transporte, à transferência, à distribuição, à revenda e à comercialização de biocombustíveis, assim como avaliação de conformidade e certificação de sua qualidade, fiscalizando-as diretamente ou mediante convênios com outros órgãos da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. A ANP cumpre, assim, sua função institucional notadamente mediante a edição de atos normativos regulatórios disciplinadores das atividades do setor econômico em referência, bem assim na fiscalização do cumprimento de todo o regramento aplicável.

No caso concreto, portanto, seria necessário verificar se a prescrição veiculada pelo art. 6º, da Resolução ANP nº 43/2009, foi além do que poderia. O exame de constitucionalidade do decreto legislativo em questão, depende de perquirir se a norma objeto de sustação foi editada pela ANP desbordando os limites da função regulatória que lhe foi outorgada pela Lei do Petróleo. Nesse contexto, seria necessário avaliar se a regulação da ANP se encontra dentro do plexo de atribuições que lhe foram conferidas. Fazendo-o, é fácil depreender que o estabelecimento desse tipo de restrição à livre concorrência está dentro da bitola normativa legalmente estatuída pela Lei do Petróleo.

Podem até haver casos específicos em que uma agência reguladora atue na concreção de função regulamentar estrita, se a lei assim permitir, e, nesta hipótese, o controle por meio do decreto legislativo deverá ser levada a efeito, no caso da regulamentação específica desbordar dos seus limites estritos (para fiel cumprimento da lei regulamentada). Todavia, a função normativa das agências reguladoras é diferente da função regulamentar, em termos materiais e formais, e, quando o legislador reformador constitucional optou pela instituição de um Estado Regulador, o fez tendo em vista todo esse panorama.

De outro lado, a verificação sobre se a limitação à livre iniciativa (em termos materiais) veiculada pela sobredita resolução da ANP está ou não em desacordo com os princípios de índole constitucional pertinentes, é função típica do Poder Judiciário, o qual já o fez em casos análogos (conferir: RE 229440-2/RN, Rel. Ministro Ilmar Galvão; RE 349.686/PE, Rel. Ministra Ellen Gracie). Assim, se o Congresso Nacional optar por fazer o controle do mérito e constitucionalidade material do ato regulatório, especialmente através do instrumento limitado do decreto legislativo, estará, aí sim, invadindo competência constitucional típica do Poder Judiciário, e, porquanto, invalidando seus próprios atos.

Assim, não cabe ao Congresso Nacional interferir no mérito, através do decreto legislativo, de ato normativo das agências reguladoras, simplesmente porque não está de acordo com o conteúdo material de tais prescrições regulatórias. Caso pretenda o Congresso Nacional modificar a norma em tela, ou seja, afastar a proibição da venda direta de produtores de etanol para postos revendedores de combustíveis, dispõe do instrumento próprio para tanto: lei em sentido estrito. Portanto, caso venha a ser aprovado o projeto de decreto legislativo nº 61/2018, padecerá de inconstitucionalidade, na medida em que terá desbordado de sua função e limitações constitucionais. Caberá, neste caso, a intervenção do Poder Judiciário, para afastar o decreto lei inconstitucional.

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